Editorial "arrependido"
É sempre bom ver sinais de arrependimento. O editorial de José Manuel Fernandes, hoje no Público, dá nota de uma "descoberta" importante: o actual governo não governa! E as putativas reformas, antes tão aplaudidas, afinal são apenas putativas.
Como os links, em especial com o Público, se "quebram" rapidamente, deixo aqui, com grande vénia, a totalidade deste editorial marcante (o destaque é da responsabilidade do Burocracia):
"Onde Está o Governo?
Por JOSÉ MANUEL FERNANDES
Sexta-feira, 19 de Dezembro de 2003
É uma impressão que primeiro surgiu levemente, depois se insinuou sem se fazer convidada e, por fim, se instalou no inconsciente colectivo: temos Governo - mas não temos. Ou, por outras palavras: ele está lá, mas não se nota. É como se não estivesse. Damos pela sua presença, mas não pela sua missão: governar. Decidir. Dizer por onde vamos.
De certa forma, é o pior que nos podia acontecer. Durante uns meses, por vezes com rapidez inusitada, ou pelo menos inesperada, pensou-se estarmos perante um verdadeiro impulso reformista. Podia-se apoiar ou discordar violentamente das reformas, mas tinha-se a percepção de que o país se movia, se agitava, se empolgava. Depois, em parte travados pelo nosso nacional conservadorismo e endémico imobilismo, em parte bloqueados pela falta de destreza política ou absoluta ausência de projecto, quase todos os ministros foram perdendo velocidade, acomodando-se, rendendo-se. Isto nos melhores casos: na verdade, ministros houve, e há, que nunca chegaram a ser mais do que as suas próprias figuras de cera sentadas em amplos gabinetes ou no banco de trás de volumosos carros pretos.
Parece sina, esta das entradas de leão e saídas de sendeiro. Nos tempos de Guterres, toda a energia se parecia esgotar no "diálogo", e o país não funcionava porque havia sempre a hipótese de mais uma conversa, de discutir mais um argumento, de obter mais uma cedência. Nos tempos que vivemos, em contrapartida, o país pára numa espécie de greve de braços caídos: a administração não gosta do Governo, não aprecia as reformas, sente-se, mal ou bem, injustiçada, e arrasta os pés. O país arrasta os pés. E todos os que tentam inverter esta lógica esbarram no encolher de ombros do funcionário que está por detrás do balcão ou na insensibilidade do ministro que, impreparado, não despacha, arquiva. Por baixo do monte da esquerda da sua imensa secretária.
O retrato peca, porventura, por exagero. Até há gente a fazer o seu melhor e a conseguir algum êxito nas reformas que se propôs levar por diante. Algo continua a suceder na área da saúde. E na segurança social. Já muito pouco parece estar a suceder na educação e no ensino superior. Quase nada nos investimentos públicos. Absolutamente nada no ambiente, menos que nada na justiça. Há zonas onde só há trapalhadas - nas privatizações de empresas industriais, ou nas polícias. E outras onde, de repente, tudo ficou silencioso quando falta fazer o essencial, como a da administração pública.
E como se isto não chegasse, os media saltam de debate em debate, de "caso" em "caso", com o Governo a correr atrás, numa estratégia que procura minimizar perdas, não potenciar ganhos.
Como é que aqui chegámos? Em parte por motivos endémicos ao próprio Governo, onde são numerosas as figuras a que falta estatura, dinamismo, uma ideia clara e ambição. É mal há muito diagnosticado. E em parte porque o desnorte da oposição, a inesperada trégua oferecida pelo caso Casa Pia, terá criado a ilusão de que não era preciso ninguém esforçar-se: ganhava-se por falta de comparência.
Mesmo acreditando - como é o meu caso - de que o país necessitava de ter nas Finanças alguém com a obsessão do défice, quase dois anos depois o défice apenas esconde o défice de energia de uma equipa governativa onde, precocemente, muitos parecem ter desistido.
É certo que, como dizia Sertório, este é um povo que nem se governa, nem se deixa governar. Mas ao menos podiam tentar..."
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