Regressa Estado, estás perdoado!(?)
A tragédia dos incêndios está a fazer recordar, mesmo aos cépticos, a importância de um Estado presente e actuante. Quando a Direcção-Geral das Florestas foi desmembrada ou a Comissão de Fogos Florestais foi extinta ninguém se impressionou com esses "actos de gestão", mas agora até o "neo-conservador" director do Público vem pedir uma espécie de refundação da DGF, ao mesmo tempo que deixa uma lágrima pelos técnicos perdidos da antiga JAE e pela quase desaparecida Direcção-Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais (ver Público de 10 de Agosto).
Mas quem põe mesmo o dedo na ferida é António José Teixeira no seu texto de hoje no DN, que aqui transcrevo (quase na íntegra) com uma grande vénia:
Legislar para não cumprir
Uma das justificações do Estado é a segurança. A superação da barbárie, a sublimação da violência física e a garantia de defesa da comunidade, justificaram sucessivos compromissos sociais. A segurança foi ganhando contornos mais alargados e sofisticados para um desejado estado de bem-estar. Se o Estado tem uma utilidade é a protecção social. Isto para dizer que a actual tragédia do fogo que nos atravessa pôs a nu a fragilidade do Estado pressupostamente protector. Há muito não se via o fogo ameaçar pessoas, casas habitadas, aldeias, perante a impotência dos homens e da tecnologia. E não é apenas o fogo. Podemos falar da qualidade da água dos rios ou do mar, podemos falar da carne inundada de hormonas, domínios tantas vezes mais ameaçadores que a violência dos mísseis. O Estado tornou-se incapaz de garantir o ordenamento do território, a regulação dos mercados e a protecção social. O imparável processo de privatização em curso, apresentado como a salvação do serviço público, deitou por terra serviços florestais, inspecções, elos de protecção que poderão ter ficado aquém da eficácia desejável, mas que agora agonizam a pretexto do défice. Luísa Schmidt passou em revista, há dias no Expresso, alguns exemplos de abandono. A Inspecção-Geral do Ambiente está reduzida a uma dúzia de inspectores para centenas de milhar de actividades: «As inspecções até já se fazem por via postal» Na Inspecção-Geral da Administração do Território há 26 inspectores para quatro mil freguesias. Na Direcção Regional do Ambiente de Lisboa e Vale do Tejo contam-se apenas uma directora e uma técnica. No Parque do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina há seis técnicos para 740 mil hectares. É difícil imaginar ambiente mais trágico. Para que serve assim o Estado? Para fazer leis gerais que aproveitam a interesses particulares. Legislar é a solução para todos os problemas. Governos e parlamentos ocupam o seu tempo a corrigirem-se, a negarem o que decidiram. Produzem quilómetros de texto legal, tábuas de lei para a Justiça e matéria-prima para os profissionais da interpretação. Muitas leis não chegam a completar-se, a regulamentar-se. Boa parte não se aplica, não se cumpre, não se faz cumprir. Corrói-se a fiscalização, desacredita-se a inspecção, para abrir caminho à justiça privada, à arbitragem entre as partes. Há uma feudalização crescente dos interesses particulares que encontra nos poderes democráticos grande compreensão, quando não uma cumplicidade activa.
Se calhar, em vez de "acabar" com o Estado, vamos ter de o "salvar".
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