Na passada segunda-feira, Margarida Matos Rosa escreve no Público sobre o que falta
"para nos reconciliarmos com a «missão pública»". Apesar de ser um pouco "chover no molhado", o artigo refere aspectos da experiência americana que não serão do conhecimento de todos e, por isso, o Burocracia toma a liberdade de, scv, o reproduzir:
Reconciliação com a Missão Pública
Por MARGARIDA MATOS ROSA
Segunda-feira, 10 de Maio de 2004
Inspirando-me num artigo lido recentemente sobre a falta de sacerdotes em Portugal, bem como a falta de incentivo para que esta "vocação" se revele, ocorreu-me que situação semelhante existe na administração pública nacional.
Se no contexto da vida religiosa se fala de "sacrifício" em prol dos outros, também quem segue a via da "causa" pública é tido como alguém que terá de se sacrificar, nomeadamente em termos de progressão e desenvolvimento de carreira, de remuneração e em muitos casos de prestígio social. No entanto, o comum é esquecermos que quem opta genuinamente pela alternativa religiosa não o vê como um sacrifício; pelo contrário, encara a decisão com espírito de missão e alegria por poder dedicar-se à sua causa. Também quem deliberadamente segue a carreira pública possui o mesmo entusiasmo de quem segue a sua "vocação". Contudo, em ambas as áreas, tem vindo a descrescer rapidamente o interesse dos mais jovens. Se no primeiro âmbito simplesmente diminui o número de padres, na administração pública acaba por haver um efeito perverso de "última escolha" de carreira com óbvias repercussões na qualidade dos serviços prestados: quem não consegue ir para outro lado, acaba na "função pública". A própria expressão já não contém muito de exaltante. Assim, se nos círculos religiosos se debate a necessidade de mudar o discurso do "sacrifício" e de se abordar mais explicitamente a opção de carreira na vida religiosa junto dos mais novos, também a vocação para a "causa" pública deve ser encorajada junto destes.
Se nas escolas primárias e secundárias as noções de cidadania e consciência pública devem ser incutidas, é no entanto nas universidades que os alunos com a tal "vocação" devem encontrar as disciplinas que lhes permitam desenvolver capacidades e conhecimentos para um bom desempenho no serviço público. Falta actualmente nos currículos universitários (de primeiro grau, como nos avançados) uma preparação consistente sobre a criação ou execução de políticas públicas. Ocorre-nos lembrar que nos países em que o serviço público é avaliado por critérios de profissionalismo elevados, existem concorridas escolas de administração pública, ou de "assuntos públicos", mais abrangente. Têm por missão preparar os alunos para variadas carreiras ligadas à esfera de acção pública e simultaneamente desenvolver um compromisso duradouro com a mesma.
Tomemos como exemplo a Woodrow Wilson School, na Universidade de Princeton. A escola foi criada em 1930 com o objectivo de propor aos alunos de licenciatura um programa interdisciplinar que se centrasse nas áreas de "Public and International Affairs", ou seja dos negócios estrangeiros (diplomacia) e dos restantes assuntos do domínio da administração pública. O nome da escola pretendeu homenagear o vigésimo-oitavo presidente dos Estados Unidos da América, o qual via esta universidade como um instrumento ao serviço da nação ("Princeton in the nation's service"). Em 1990, o então reitor Harold Shapiro adaptou esta frase aos tempos actuais para "Ao serviço da nação e de todas as nações" ("Princeton in the nation's service and in the service of all nations"), reflectindo a diversidade do actual corpo docente e estudantil da universidade. Mais tarde, em 1960, a Woodrow Wilson School avançou com a sua acção educativa também para os programas de mestrado e doutoramento e aos de pós-graduação para alunos com larga experiência no âmbito da administração pública. Hoje, os seus antigos alunos continuam a defender a "causa pública" em variadas áreas e funções, como sejam as de "funcionário público" (incluindo a de gestor público e a de membro do governo), como também em fundações e institutos de investigação, organizações multilaterais e outras instituições, até não-governamentais, que sirvam a defesa do interesse público, e isto em vários países.
Um dos factores responsáveis pelo interesse crescente nestes programas de estudo especializados é o seu conteúdo, elaborado em simbiose com as actuais instituições públicas nacionais e supranacionais e enriquecido por uma constante troca de opiniões com os decisores políticos.
Em Portugal, será necessário um esforço de anos para nos reconciliarmos com a "missão pública". Para que tal aconteça, é necessário em primeiro lugar "despertar vocações" e melhorar recursos (humanos, nomeadamente), para obter serviços de qualidade. No entanto para cativar tais recursos, é essencial uma mudança profunda nos incentivos aos mesmos. Não se trata apenas de remuneração: é importantíssima a percepção de que as políticas definidas poderão de facto ser realizadas. O mesmo é dizer que o grau de eficiência em todo o processo de decisão política deverá ser bastante mais elevado do que é hoje. Enfim, a possibilidade de realização profissional não dever ser diferente da do sector privado.
Hoje, muitos portugueses sentem-se desmotivados pelo peso do sentido figurado do substantivo "política" - isto é "astúcia", "maneira hábil de agir". É urgente restituir-lhe o sentido próprio de "ciência do governo das nações".
*M.P.A. (Master in Public Administration) pela Princeton University, responsável pela área de gestão de activos institucional no BNP Paribas e membro de missão possível, grupo cívico de informação e opinião